quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Transe (Daniel Codespoti - 25/02/10)


-->


Já sentiu dor? Não ouviu? Eu perguntei se você já sentiu dor... Não, não um braço quebrado, dor de cabeça, de estômago, de dente, de amor ou de abandono... Estou te perguntando se já sentiu dor de verdade... Dor sem motivo, uma dor que não te coloca em nenhuma posição... Já sentiu a dor pela dor? Sem culpados ou culpa... Aquela dor que é impossível de ser verbalizada... Não está nas palavras, nem nas esquinas, muito menos em barrigas famintas... É uma dor poderosa, muito parecida com os mitos que aprendemos a amar e a temer... Muito parecida com a morte, com a vinda do primogênito... com a felicidade e a tristeza. 

Câmera lenta... você se move e ninguém te vê... Os movimentos das pessoas se tornam previsíveis... deixam um rastro, um cheiro... As criaturas começam a feder suas vontades... Perfume que visa camuflar a vontade de violência, de sexo... A vontade de pilhar, saquear, matar, estuprar... O constante e primal desejo de violar e ser violado... Seja por vingança ou por qualquer outro sentimento, outro capricho. Já experienciou medo? Qual é o seu maior medo? O da morte? Pobreza? Tem medo de amar? Medo de gostar de coisas que ninguém aprovará? Medo de mim? Você tem medo de mim?

Já começou... Pode ouvir? Ouça com atenção... Nada mais importa... Ouça nas suas veias... É sangue correndo nelas... Ouça o barulho... algumas artérias passam bem perto dos seus ouvidos... Dá para ouvir cada jorro de sangue que seu coração lhe proporciona em fortes bombeadas... Você consegue ouvir mais? Tente ouvir os gases passeando por suas tripas, ou o inquietante barulho do movimento peristáltico. E o cheiro? Sente o cheiro do seu suor... Da cera do seu ouvido??? Sente o cheiro do cebo em seus cabelos??? E o cheiro da porra que está guardada dentro do teu saco? Sente? As fezes sendo compactadas na porta do seu rabo... Tudo isso é você... Todos os pelos que você corta, os líquidos que você lava, as secreções que você finge repudiar... Finge ter nojo... Negue o que você é e estará negando sua vida, o verdadeiro prazer, o gozo sem limites... Teu cacete ou tua boceta não valem mais nem menos do que qualquer outra parte do seu corpo... Não há o que recriminar ou tentar esconder... Entregar-se ao transe existencial é uma viagem sem volta... Uma vez que embarcou, sabe que não poderá mais voltar... Nada do mundo, da vida anterior fará mais sentido. Será por fim, um completo Estrangeiro.