Sempre
preferi estar entre os malditos. O soco na cara à tapa nas costas. Não tenho
nada contra mentiras desde que sejam descaradamente desferidas. Sempre preferi
um vilão bem resolvido a um herói em conflito. O problema não é ter dúvidas ou
certezas, é fingir que as tem.
Chamavam
o cara de Pelego. Não era adjetivo não, era quase nome próprio. Por aí você já
vê... Levava jeito pra fama, mas nunca foi famoso. As pessoas só se incomodavam
com ele quando não conseguiam ignorá-lo, aí era um espetáculo bonito de se ver.
E o que mais enlouquecia o povo todo era que ele não se enquadrava. Não era
fácil quebrar aquela personalidade, quando bebia ficava afiado feito navalha. O
humor era ácido e hiperbólico, fora a desagradável habilidade de dissimular uma
sabedoria milenar que não tinha, mas esse era o jogo, ele fingia tão bem que
quase ninguém sabia da farsa. Vez ou outra dava uma brecha, mas as pessoas
estavam ocupadas demais fazendo suas poses e tentando se convencer de que a
vida poderia ser boa e o mundo poderia ser justo. Eram muitas as distrações:
dinheiro, carros, canudos, bebida, sexo, etc... Não dava tempo de se conectar
com o vazio da alma, com as cinzas dos dias, com a solidão das madrugadas. Essa
era outra coisa que costumava irritar muito as pessoas que ainda insistiam em
confrontar sua companhia. Estar com o Pelego era sempre um convite a se visitar
de forma irreversível. Tudo ia sob controle até que a melancolia aparente dava
lugar a um brilho nos olhos que só os que ardem até o fim costumam possuir. Aí
começava a palestrar sobre aquilo que amava com um fervor poucas vezes
detectado no imaginário afetivo do mundo contemporâneo. Quando caiam em si,
alguns já estavam questionando tudo aquilo que até então tinham como certezas.
Outros preferiam taxa-lo logo de sonhador, fora da realidade, louco. Pensar dói
e às vezes basta à dor de existir, não é mesmo?
As
pessoas que o cercavam só puderam experimentar verdadeiramente a felicidade quando
viram o Pelego isolado do mundo. Não era raro quase poder sentir o cheiro do
alívio quando alguém desferia: “Sempre falei que esse cara era meio louco, olha
aí no que deu”. Como se o seu isolamento e sua depressão fossem um atestado de
que tudo que ele representava era pernicioso para uma vida realmente plena e com
sentido. Isso não incomodava o Pelego. Sabia que acabaria só, vagando de cidade
em cidade, de bar em bar.
A
última vez que o vi, estava doente, sozinho e na miséria. Fazia uma refeição
por dia e morava de favor nos fundos da casa de uma senhora na região do
Ipiranga. Continuava um mestre na arte de esvaziar garrafas e encher cinzeiros.
Imbatível. E por vezes, entre uma mentira mirabolante e uma verdade inventada,
eu conseguia identificar naquela face marcada aquele mesmo olhar de anos atrás,
aquele brilho que ousou desafiar de forma tão naif a liquidez de uma época covarde. Brilho esse que nunca mais vi
em ninguém.
...