terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Pelego (13/12/2016)


     Sempre preferi estar entre os malditos. O soco na cara à tapa nas costas. Não tenho nada contra mentiras desde que sejam descaradamente desferidas. Sempre preferi um vilão bem resolvido a um herói em conflito. O problema não é ter dúvidas ou certezas, é fingir que as tem.

     Chamavam o cara de Pelego. Não era adjetivo não, era quase nome próprio. Por aí você já vê... Levava jeito pra fama, mas nunca foi famoso. As pessoas só se incomodavam com ele quando não conseguiam ignorá-lo, aí era um espetáculo bonito de se ver. E o que mais enlouquecia o povo todo era que ele não se enquadrava. Não era fácil quebrar aquela personalidade, quando bebia ficava afiado feito navalha. O humor era ácido e hiperbólico, fora a desagradável habilidade de dissimular uma sabedoria milenar que não tinha, mas esse era o jogo, ele fingia tão bem que quase ninguém sabia da farsa. Vez ou outra dava uma brecha, mas as pessoas estavam ocupadas demais fazendo suas poses e tentando se convencer de que a vida poderia ser boa e o mundo poderia ser justo. Eram muitas as distrações: dinheiro, carros, canudos, bebida, sexo, etc... Não dava tempo de se conectar com o vazio da alma, com as cinzas dos dias, com a solidão das madrugadas. Essa era outra coisa que costumava irritar muito as pessoas que ainda insistiam em confrontar sua companhia. Estar com o Pelego era sempre um convite a se visitar de forma irreversível. Tudo ia sob controle até que a melancolia aparente dava lugar a um brilho nos olhos que só os que ardem até o fim costumam possuir. Aí começava a palestrar sobre aquilo que amava com um fervor poucas vezes detectado no imaginário afetivo do mundo contemporâneo. Quando caiam em si, alguns já estavam questionando tudo aquilo que até então tinham como certezas. Outros preferiam taxa-lo logo de sonhador, fora da realidade, louco. Pensar dói e às vezes basta à dor de existir, não é mesmo?

     As pessoas que o cercavam só puderam experimentar verdadeiramente a felicidade quando viram o Pelego isolado do mundo. Não era raro quase poder sentir o cheiro do alívio quando alguém desferia: “Sempre falei que esse cara era meio louco, olha aí no que deu”. Como se o seu isolamento e sua depressão fossem um atestado de que tudo que ele representava era pernicioso para uma vida realmente plena e com sentido. Isso não incomodava o Pelego. Sabia que acabaria só, vagando de cidade em cidade, de bar em bar.

     A última vez que o vi, estava doente, sozinho e na miséria. Fazia uma refeição por dia e morava de favor nos fundos da casa de uma senhora na região do Ipiranga. Continuava um mestre na arte de esvaziar garrafas e encher cinzeiros. Imbatível. E por vezes, entre uma mentira mirabolante e uma verdade inventada, eu conseguia identificar naquela face marcada aquele mesmo olhar de anos atrás, aquele brilho que ousou desafiar de forma tão naif a liquidez de uma época covarde. Brilho esse que nunca mais vi em ninguém.


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